Depois de algum tempo, a água já tocava os nossos pés. Não havia sequer uma moedinha em nossos bolsos, não tínhamos nada para beber - a não ser a saliva de nossos beijos - e nem para comer. Mas havia em nossos corpos, e em nossos espíritos uma espécie de fonte energética, alimentícia, uma espécie de usina de energia nuclear, não sei o que era, mas nos deixava cada mais vivos, com o sorriso cada vez mais sincero e mais espontâneo. Com as sensações incontroláveis, os braços tremiam em cada abraço, e quando atravessávamos os campos - que existiam depois de uma hora caminhando na direção oposta da praia - as pernas pareciam querer correr por toda o vasto horizonte, e a sensação que nos tomava era que correríamos o mais rápido possível, quebrávamos recordes no anonimato, aplainávamos sobre todos os lagos, até os mais imensos, onde a vista se perde... E minha vista se perdia toda a noite. A beira da fogueira, nos tínhamos calor e proteção dos animais. Mas quando o fogo se apagava, nos tocávamos de uma forma, como se estivéssemos cegos pela primeira vez, ou como se fôssemos íntimos desconhecidos, amantes visionários, apaixonados de tão forma que a pele queimava (e parecia que o calor de nossos corpos causaria as mais terríveis queimaduras, mas não queimava a pele, mas a alma estava em combustão) e parecíamos duas estrelas no meio espaço, no meio do vazio, no centro de todo o nada desse mundo. E quando parávamos, quando o corpo ficava inerte, e os olhos se fechavam de fato, o mundo se tornava inocente de todos os crimes. O perdão reinava nos sonhos. O amor era a lei de todos os momentos. E eu e ela éramos os reis desse reino. E quando ainda era madrugada, e alguns pássaros começavam a cantar - não era a nossa língua de fato, mas havia tanta vida e entrega naquelas notas, naquele timbre, o doce movimento do som, era impossível não acreditar que realmente aquilo tudo não era um sonho, não estávamos mortos, e nem caminhando para lugar nenhum - nos acomodávamos um ao outro no lugar que escolhemos para deitar. Havia um som baixo quando agente dormia. A única coisa estranha era ter que acordar. Eu pensava que teria que fazer tudo o possível para não deixar esse tudo estragar o dia dela. Acordar num mundo que se suicida desde o princípio de tudo, onde não existe mais oi, com licença, como esta?, tudo bem, tenha um bom dia, desculpe, precisa de ajuda? Não, nada disso existe mais. Cada qual esta por si, cada monstro tem que escolher uma vítima por dia, é preciso computar o número máximo de mortos. É preciso anotar seus nomes, pisar sobre seus corpos, vomitar sobre seus túmulos e queimar toda o parente idiota e medíocre que derrama lágrima sobre o defunto. É preciso acima de tudo cuspir em cada rosto desses que se esfolam para apenas poder voltar vivo para casa, e descansar a cabeça depois de mais um torturante dia de trabalho. Alienados e mais alienados, todos nós! Perdidos em cada esquina. Com a cabeça encostada na janela do ônibus, pensando em ter um carro, uma casa bonita, uma família feliz que não passa fome e nem sede, que tem o que vestir e como estudar, e descer do ônibus com dificuldade, voltar a realidade, a essa injustiça sem tamanho. Terra da desonestidade. Da Injustiça. Da falta de oportunidade, da fome que mata e enlouquece, terra onde as pessoas são torturadas por que acreditam no que falam... terra maldita sem deus e nem diabo... terra fudida que cheira a merda e esta mergulhada num barril de sangue, sangue de nossas mãos assassinas e seguiremos assim, até o final de tudo, esse tudo que é sinônimo de nada...
Acordei estranho. Mas ao meu lado estava ela. Aqueles pensamentos ainda estavam vivos e olhei para ela com pena de que ela acordasse e voltasse a esse monte de nada novamente. Mas ela dormia bem, o rosto estava leve e sereno. Me senti bem. Ela iria acordar. E acordou. Isso sim melhorou o mundo. Até me esqueci do resto.